terça-feira, 16 de dezembro de 2014

O culto aos mortos :




Desde os mais remotos tempos, deram estas crenças lugar a regras de conduta. Como, entre os antigos, o morto necessitasse de alimento e de bebida, concebeu-se ser dever dos vivos satisfazer-lhe esta sua necessidade. O cuidado de levar aos mortos os alimentos não foi relegado ao capricho ou aos sentimentos variáveis dos homens; foi obrigatório. Assim se estabeleceu uma verdadeira religião da morte, cujos dogmas logo desapareceram, perdurando, no entanto, os seus rituais até o triunfo do cristianismo.

Os mortos eram considerados criaturas sagradas (1). Os antigos davam-lhes os epítetos mais venerandos que encontravam no seu vocabulário: chamavam-nos bons, santos, bem-aventurados (2). Dedicavam-lhes quantas venerações o homem pode dedicar à divindade que ama ou teme. Para o seu pensamento cada morto era um deus (3). Esta espécie de apoteose não era apanágio dos grandes homens; entre os mortos não havia distinção de pessoas. Cícero diz-nos: "Os nossos antepassados quiseram que os homens que deixassem de viver fossem contados entre os deuses (4) . Não era mesmo necessário ter sido homem virtuoso; tanto era deus o
mau como o homem de bem; somente o mau continuaria na sua segunda existência com todas as suas más inclinações já reveladas durante a sua primeira vida (5).

Os gregos davam de boa mente aos mortos o nome de deuses subterrâneos. Em Esquilo, um filho invoca seu falecido pai com estas palavras: "ó tu que és um deus sob á terra". Eurípides, falando de Alceste, acrescenta: "Junto do teu túmulo o viandante parará e dirá: Aqui vive agora uma divindade ditosa" (6) . Os romanos davam aos mortos o nome de deuses manes. Prestai aos deuses manes todas as honras que lhes são devidas, diz Cícero, são homens que abandonaram esta vida terrena; reverenciai-os como criaturas divinas" (7).

As sepulturas eram os templos dessas divindades. Por isso tinham a inscrição sacramental Diz Manibus. O deus permanecia encerrado no seu túmulo, Manesque sepulti, no dizer de Virgílio (8). Diante da sepultura havia um altar para os sacrifícios igual ao que há em frente dos templos dos deuses (9).

Achamos o culto dos mortos entre os helenos, os latinos, os sabinos (10) e entre os etruscos; encontramo-lo também entre os árias da índia. Os hinos do Rig-Veda fazem-lhe referências. O livro das leis de Manu menciona este culto para no-lo apresentar como o mais antigo culto professado pelos homens. Viu-se já neste livro como a idéia da metempsicose não tomou conhecimento desta velha crença; e, apesar de a religião de Brama já anteriormente estar estabelecida, contudo, sob o culto desta religião como sob a doutrina da metempsicose, subsiste ainda viva e indestrutível a religião das almas dos ancestrais a forçar o redator das leis de Manu a levá-la em consideração e a admitir ainda suas prescrições no livro sagrado. Não é singularidade menor deste livro tão esquisito conservar as regras relativas às antigas crenças, sendo evidentemente redigido numa época em que já prevalecem crenças inteiramente opostas. Isto nos prova que, se é necessário muito tempo para as crenças humanas evoluírem, ainda muito mais tempo se torna necessário para as práticas exteriores e as leis se transformarem. Mesmo em nossos dias, depois de tantos séculos passados e de tantas revoluções, os hindus continuam fazendo as suas oferendas aos ancestrais. Essas idéias e esses rituais são o que de mais antigo encontramos na raça indo-européia, sendo também o que ali apresentaram de mais persistente.

0 culto na índia era o mesmo que na Grécia e na Itália. O hindu devia oferecer aos manes o alimento denominado sraddha. "Que o chefe da casa faça o sraddha com arroz, leite, raízes e frutos, a fim de conseguir a benevolência dos manes. O hindu acreditava que, quando oferecia o repasto fúnebre, os manes dos ancestrais vinham sentar-se ao seu lado e aqui comiam o alimento que lhes era oferecido. Acreditava ainda que esta refeição proporcionava aos mortos grata alegria: "Quando o sraddha é oferecido segundo os rituais, os ancestrais daquele que oferece o repasto experimentam uma sensação inalterável" (11).

Desta sorte, em sua origem, os árias(*) do Oriente pensaram como os do Ocidente, em relação ao mistério do seu destino para além da morte. Antes de crerem na metempsicose, que supuseram distinção absoluta existente entre a alma e o corpo, acreditaram na vaga e indecisa existência da criatura humana, invisível mas não imaterial, exigindo dos mortais alimento e bebida.

O hindu, como o grego, encarava os mortos como seres divinos que gozavam de uma existência bem-aventurada. Contudo era necessário preencher-se uma condição indispensável para sua felicidade; era imprescindível que em tempos oportunos os vivos lhes trouxessem suas oferendas. Quando se deixasse de trazer o sraddha ao morto, a alma desse morto deixava a pacífica morada, e tornava-se alma errante, atormentando os, vivos; destarte, se os manes eram verdadeiramente deuses, eram-no tão-somente enquanto os vivos os venerassem com o seu culto (12).

Eram exatamente estas as opiniões a tal respeito formuladas tanto por gregos como por romanos. Ao deixarem de oferecer aos mortos o repasto fúnebre, deixavam estes seus túmulos; como sombras errantes, ouviam-nos gemer pela calada da noite silenciosa. Censuravam os vivos por sua negligência ímpia; procuravam puni-los enviando-lhes doenças ou castigava-nos com a esterilidade da terra. Enfim, não davam descanso aos vivos até o dia em que se restabelecessem os repastos fúnebres (13), O sacrifício, a oferenda de alimentos e a libação faziam-nos voltar ao túmulo e proporcionavam-lhes o repouso e os atributos divinos. O homem estava então em paz com os seus mortos (14).

Se o morto cujo culto se descurara tornava-se uma criatura malfazeja, um outro que se honrava era sempre um deus tutelar que amava aqueles que lhe ofereciam alimentos. Para protegê-los, continuava a tomar parte nos negócios humanos, neles desempenhava com freqüência o seu papel. Embora morto, sabia ser forte e ativo. Dirigiam-lhes súplicas, pedindo-lhe seu auxílio e os seus favores. Quando se encontrava algum túmulo parava-se e dizia-se: "Tu, que és um deus sob a terra, seja-me propício" (15).
Podemos avaliar o poder atribuído pelos antigos aos mortos, por esta prece dirigida por Electra aos manes de seu pai: "Tende piedade de mim e de meu irmão Orestes; fazei-o voltar a este país; atende a minha súplica, ó meu pai; atende os meus votos recebendo as minhas libações". Esses deuses poderosos não proporcionam apenas bens materiais; porque Electra acrescenta: "Dai-me um coração mais puro do que o de minha mãe, e mãos mais cândidas do que as suas" (16). Do mesmo modo, o hindu pede aos manes 'que aumente em sua família o número de homens de bem e se lhes conceda multo para ofertarem'.
As almas humanas divinizadas pela morte os gregos denominavam-nas demônios(**) ou heróis (17). Os latinos denominavam-nas de lares, manes. (18), gênios. "Os nossos ancestrais creram, diz Apuleio, que os manes, quando malfazejos, deviam ser denominados de larvas, reservando-se-lhes o nome de lares só para os benfazejos e propícios (19). lê-se noutra parte: Gênio ou lar é o mesmo ser: assim o creram os nossos antepassados" (20) ; e em Cícero vem: Aqueles que os gregos chamam demônios, damo-lhes o nome de lares (21).
Essa religião dos mortos parece ter sido a mais antiga que existiu entre estes povos. Antes de conceber e de adorar Indra ou Zeus, o homem adorou os seus mortos; teve-lhes medo e dirigiu-lhes súplica. Parece que o sentimento religioso do homem tenha tido origem com este culto. Foi, talvez, à vista da morte que o homem teve pela primeira vez a Idéia do sobrenatural e quis confiar em coisas que ultrapassavam a visão de seus olhos. A morte teria sido o primeiro mistério, colocando o homem no caminho de outros mistérios. Elevou o seu pensamento do visível ao invisível, do passageiro ao eterno, do humano ao divino. ("A Cidade Antiga" de Fustel de Coulanges)

(*) Hoje os chamamos de Indo europeus
(**) Daemons
(1) Plutarco, Sólon, 21.
(2) Aristóteles citado por Plutarco, Quest. rom., 52; grecg., 5, Esquilo. COM., 475.
(3) Eurípides, Fenle., 1.321. - Odisséia, X, 526: - Esquilo, COM., 475: "ó bem-aventurados os que habitais sob a terra. OUVI a minha invocação; vinde em socorro de vossos filhos e dai-lhes a vitória". - E em virtude dessa idéia que Virgílio chama por seu pai morte de Senste parens, dlvinus parens; Virgílio. En., V, 80; v, 47. Plutarco. Quest. rom., 14. - Cornélio Nepote, Fragor, Xll: Parantebis miei et Invocabis deurn parentem
(4) Cícero, De legibus li, 22.
(5) Santo Agostinho, Cidade de Deus, VIII. 26; ,'C, ll.
(6) Eurípides, Apeste, 1.015.
(7) Cícero. De legibus, li, 9. Varrão, em Santo Agostinho, Cidade de Deus, Vil], 26.
(8) Virgílio En.. IV, 34.
(9) Eurípides. Troiana,, 96. Electra, 505-510. - Virgílio, En., VI, 177: Aramque te. pulcri; 111, 63: ~ Manibus arae; 111, 305. Et geminas, causam lacrlmls, sacraverat aras; V, 48; Divini ossa parentia condimus terra maetasque Isacravimus aras o gramático Nónio Marcelo diz que os antigos chamavam templo ao sepulcro e realmente encontramos em Virgílio o vocábulo templum como designando o túmulo ou cenotáfio por Dido erigido e seu esposo ( Eneída IV, 457). - Plutarco, Quest ~, 14: Continuou a chamar-se ara pedra erigida sobre o túmulo (Suetônio, Nero, 50). Esta palavra é aplicada nas Inscrições fúnebres, Orelli n? 4.521, 4.522, 4.826.
(10) Varrão. De língua latina. V, 74.
(11)Leia de Manu, 1, 95; III, 82, 122, 127, 146. 189, 274.
(12) Esse culto tributado aos mortos exprimia-se em grego pelas palavras enaghízo, enaghismós. Pólux, VIII, 91; Heródoto, I. 167. Aristides, 21; Catão, 15; Pausânias, IX, 13, 3. A palavra enaghízo designava os sacrifícios oferecidos aos mortos; thyo os oferecidos aos deuses do céu: esta diferença acentua-se em Pausânias, li, 10. I, e no escoliaste de Eurípides, Fenic., 28. Cf. Plutarco Quest rum., 34.
(13) Vide em Heródoto, 1, 167, a história das acmes dos fócios que assustaram um pais Inteiro, até se lhes dedicar um aniversário de morte; multas outras histórias semelhantes se encontram em Heródoto e em Pausânias, VI. 6. 7. Do mesmo modo, em Esquilo, Clitemnestra, advertida de que os manes de Agaménon estavam Irritados com ela, apresse-se em anular-lhes alimentos ao seu túmulo. Vida também a lenda romena que Ovídio nos narra, Fastos, 11, 549-556: 'Tendo-se, certo dia, esquecido o dever de Parsntalla, as almas deixaram os túmulos e viram-nas correr gritando peles ruas de cidade e pelos campos tio Lácío até que os sacrifícios as obrigaram e voltar 8a suas sepulturas". Cf, a história que noa narre ainda Plínio, o Moço. Vil, 27.
(14) Ovídio, Fast., 11, 518: Animas placate paternas. - Virgílio, Em., VI, 379: Osu piabunt st statuant tumulum et tumulo solemnia mlttsnt. - Comparar o grego hiláskomai (Pausânias, VI, 6. 8). - Tito Livio, I, 20: Junta funebria placar,~ manes.
(15) Eurípides, Alceste, 1.004 (1016). - *Crê-se que quando não temos nenhum
(16) Esquilo. COM., 122-145.
(17) E possível fosse o sentido original do termo héros o de homem morto. A linguagem das Inscrições, exprimindo-se no vulgo e sendo, ao mesmo tempo, aquela em que o sentido das palavras se conserva por meta tempo emprega algumas vezes héros com a significação natural que nós atribuímos à palavra defunto. Boeckh, Corp. inscr. n . 1.6'29, 1.723, 1.781. 1.782. 1.784. 1.788. 1.789, 3.398; F. Lebas, Monum. de Moréia. P. 205. Vide Teógnio, ed. Welcker, V, 513, e Pausânias, VI, 8, 9. Os tebanos empregavam uma velha expressão com o significado de morrer, héros ghónesthal (Aristóteles, frag., ed. Heitz, t. IV, p 280; Cr. Plutarco, Proverb. galhos Alex. uni sunt. e. 47). - Os gregos devam também à alma do morto o nome de dálmon. Eurípides, Alceste, 1.140 e escoltastes. Esqui. lo, Persas, 6'20. Pausânias, VI, 8.
(18) Manes Vlrginae (Tifo Lívio, lll 58). Manas contagia (Virgílio, VI. 119). Pauis anchidae Manas (ia., X, 534), Manes Hectoris (Id., lll 303). Dia Manibus Martialis Diz Manibus Acutiae Orelli n .-s 4.440, 4.441, 4.447, 4.459, etc.). Valerii deos manas (Tifo Livro. lll t9).
(19) Apuléio. De dão Socratis. Servio, ad Eneid., 111, 63.
(20) Censorinus, De dia natali, 3.
(21) Cícero, Timeu II. - Dionisio de Halicarnasso traduz Lar familiaris por Kát okían héros (Antlq. rom., IV, 2).


 ( Cezar Drake)


Fonte : https://www.facebook.com/odragaoeseuslabirintos

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