quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Asherá, esposa de Deus. A Deusa consorte de Yahweh






A presença da Deusa em Israel (Do Bronze ao Ferro)

Conforme a pesquisadora Monika Ottermann (2004), que traça o panorama da presença da Deusa em Israel, da Idade do Bronze à Idade do Ferro, no Oriente Médio, datando a Idade do Bronze Médio (1800-1500 a.E.C), a representação da Deusa é caracterizada como “Deusa-Nua”, destacando o triângulo púbico, emergindo também representações em forma de ramos ou pequenas árvores estilizadas, combinação que vem a ser denominada “Deusa-Árvore”.
Na Idade do Bronze Tardio (1550-1250/1150 a.E.C), a Deusa-Árvore apresenta duas mudanças, aparecendo em forma de uma árvore sagrada flanqueada por cabritos ou como um triângulo púbico, que substitui a árvore. Neste período, já se nota a tendência de substituição do corpo da Deusa pelos seus atributos, em especial a árvore. Aparece,
na passagem do BM para o BT uma mudança decisiva no campo das figuras de material mais precioso: as Deusas Nuas foram substituídas em grande parte por deuses guerreiros como Baal e Reshef (...) o encontro dos sexos fica claramente relegado ao segundo plano e é substituído por representações de legitimação, luta, dominação e lealdade político-imperial (Ottermann, 2004: 5).
A Deusa continua perdendo representatividade na religião oficial, onde divindades masculinas ganham cada vez mais força, principalmente a partir de características dominadoras e guerreiras. Na Idade do Ferro I (1250/1150-1000), a forma corporal da Deusa-Árvore vai desaparecendo enquanto que formas de animais que amamentam filhotes, às vezes com a presença de uma árvore estilizada, ganham cada vez mais espaços na glíptica, significando a prosperidade e a fertilidade. A presença da Deusa fica relegada aos espaços de religiosidade das mulheres.


Na Idade do Ferro IIA (1000-900 a.E.C), início da formação do javismo as Deusas passam a ser simbolizadas por seus atributos. A forma vegetal da Deusa confunde-se com seu símbolo, a árvore estilizada, sendo que muitas vezes é substituída por ele. Entendemos essas imagens como representações da Deusa Asherah.
Na Idade do Ferro IIB (925-720/700 a.E.C), Israel e Judá apresentam diferenças no âmbito simbólico. Os documentos epigráficos de Kuntillet Adjrud e de Khirbet el-Qom destacam um vínculo estreito entre Asherah e Yahweh, o que acima de tudo demonstra um contexto politeísta, onde se adoravam a várias divindades femininas e masculinas.
Na Idade do Ferro IIC (720/700-600 a.E.C), a Babilônia derruba a Assíria e passa a dominar Israel e Judá. Neste período encontramos o símbolo tradicional da Deusa, a árvore e o ramo. Vários selos ou impressões de selos que associam símbolos astrais com árvores estilizadas foram encontrados na Palestina e na Transjordânia, o que reforça interpretações sobre a existência de um culto a Deusa Asherah ao lado do Deus Yahweh. É principalmente na forma de árvore estilizada que, ao longo de séculos, Asherah esteve presente em Israel.
Mas é sobretudo na época pós-exílica que as vertentes políticas e religiosas dominantes vão excluir e proibir a presença de uma divindade feminina dentro do javismo (Ottermann, 2005:.52).
Evidências arqueológicas da Deusa Asherah
As primeiras evidências de Asherah aparecem em textos cuneiformes babilônicos (1830-1531 a.E.C) e nas cartas de El Armana (século XIV a.E.C) (Neuenfeldt, 1999:.5).
Para o pesquisador Ruth Hestrin (1991: 52-53), informações importantes sobre Asherah vêm dos textos ugaríticos de Ras Shamra (Costa Mediterrânea da Síria). Nestes textos, Asherah é chamada de Atirat, consorte de El, principal Deus do panteão cananeu no II milênio a.E.C.


como ‘Elat, forma feminina de El. Nos textos ugaríticos, Asherah (ou seja, Atirat ou ‘Elat) é a mãe dos Deuses, simbolizando a Deusa do amor, do sexo e da fertilidade.
Também foram escavados vários pingentes ugaríticos que retratam uma Deusa, provavelmente Atirat/ ‘Elat. A figura humana estilizada nestes pingentes contém o rosto, os seios e a região púbica e uma pequena árvore estilizada gravada acima do triângulo púbico.
Em 1934, o arqueólogo britânico James L. Starkey encontrou o jarro de Lachish, datado aproximadamente no 13º século a.E.C, provavelmente ano 1220.
O jarro é decorado e contém inscrições raras do antigo alfabeto semítico. Na decoração há o desenho de uma árvore flanqueada por duas cabras com longos chifres para trás, que, segundo Ruth Hestrin, representa Asherah. Uma inscrição que segue pela borda do jarro tem sido reconstruída e traduzida por Frank M. Cross, como: “Mattan. Um oferecimento para minha senhora 'Elat”.
Não se sabe quem é Mattan, mas está claro que ele faz uma oferenda para 'Elat, que é o feminino para El, chefe do panteão cananeu no II milênio a.E.C, equivalente ao pré-bíblico Asherah. Nota-se um dado importante, o nome 'Elat está escrito logo acima da árvore, representação de 'Elat/ Asherah. Há uma possibilidade deste jarro e seu conteúdo terem sido uma oferenda à Deusa (Hestrin, 1991: 54).
No entanto, foi no templo de Arad, no Neguev, ao sul de Jerusalém, que se encontrou fortes evidências de Asherah. No santuário interno foram encontrados dois altares diante de um par de pedras verticais, possivelmente lugar de culto a Yahweh e Asherah. Um outro altar foi encontrado no pátio externo do templo com tigelas dos sacerdotes e cinzas de ossos de animais queimados, no canto uma irmandade local e altares com pedras duplas (Discovery, 1993). Segundo Elaine Neuenfeldt (1999:.6), o templo é datado aproximadamente da época do Bronze Recente, entre o 10º e 8º séculos a.E.C., quando possivelmente a reforma de Ezequias o extinguiu (2Rs 18).
Em Khirbet el-Qom, ao oeste de Hebron, em 1967, outro arqueólogo encontrou um túmulo judaico da segunda metade do século VIII (Discovery, 1993), com uma inscrição na parede interior que Severino Croatto (2001:.36) traduz como:
1. Urijahu (...) sua inscrição.
2. Abençoado seja Urijahu por Javé (lyhwh)
3. sua luz por Asherah, a que mantém sua mão sobre ele
4. por sua rpy, que...
Segundo Hestrin, em 1975-1976, o arqueólogo israelita Ze’ev Meshel, em Kuntillet Adjrud, 50km ao sul de Qadesh-Barnea, na antiga estrada de Gaza a Elat, escavou uma pousada no deserto que continha várias inscrições. Controlado por Israel, este posto estatal encontrava-se em território de Judá, funcionando aproximadamente entre 800-775 a.E.C. No prédio principal, em sua entrada, duas jarras de armazenagem com desenhos e inscrições foram encontradas e identificadas como pithos A e pithos B. Na inscrição do pithos A se lê:
Diz... Diga a Jehallel... Josafa e...”:
Abençoo-vos em YHWH de Samaria e sua Asherah.
No pithos B se lê:
Diz Amarjahu: Diga ao meu Senhor: Estás bem?”.
Abençoo-te em YHWH de Teman e sua Asherah.
Ele te abençoa e te guarde e com meu senhor.
Neste pithos aparecem três figuras, duas masculinas retratos do Deus egípcio Bes e uma claramente feminina (seios em destaque) tocando uma lira.
Ruth Hestrin (1991: 55–56), aponta ainda que em outra pintura egípcia, do túmulo do Faraó Tuthmosis III, está retratada uma Deusa na forma humana no tronco de uma árvore, apresentando alimento para o rei através do seio que é sustentado pelo braço, ambos saindo da árvore.

Willian Dever (Discovery: 1993) também aponta a dama-leão como uma forte evidência de que Asherah existiu como Deusa no início de Israel. No mundo antigo, o leão quase sempre acompanhou o Deus chefe. Em uma estela egípcia a Deusa despida em cima de um leão é chamada de Qudshu, que para William F. Albright e Frank Cross é o equivalente egípcio do ugarítico ‘Atirat/ ‘Elat e do bíblico Asherah. Em outra figura a árvore sagrada que representa Asherah é colocada em cima de um leão (Hestrin, 1991: 55-57).
Em 1968, o arqueólogo americano Paul Lapp escavou um outro artefato muito famoso em Taanach, datando ao final do 10º século a.E.C (Hestrin, 1991: 57). Num dos quartos da instalação cúltica foram encontrados prensa de óleo, forma para fazer figuras de Asherah, sessenta pesos de tear e 140 ossos de articulações de ovelhas e cabras (Neuenfeldt, 1999: 7).
Um quadrado oco de terracota, aberto na base, composto de quatro níveis ou róis também foi encontrado. Conforme Ruth Hestrin (1991: 57-58), no rol inferior, uma mulher nua flanqueada por dois leões é mais uma representação de Asherah, Deusa-mãe, o que é similar á estela egípcia com Qudshu. No segundo rol temos uma abertura vazia no meio (provavelmente a entrada do templo) flanqueada por duas esfinges (corpo de leão, asas de pássaros e cabeça de mulher). O terceiro rol traz uma árvore sagrada da qual saem três pares de galhos, simbolizando a Deusa principal, Asherah, consorte de Baal e fonte da fertilidade, sendo flanqueada possivelmente por duas leoas. No rol superior temos um touro sem chifres, com um disco de sol em cima, o que simboliza o Deus supremo não só na Mesopotâmia e no panteão hitita, como também no panteão cananeu. O jovem touro representa Baal, principal Deus do panteão cananeu, que no II milênio substituiu El, cabeça do panteão.
Em 1960, a arqueóloga inglesa Kathyn Kenyon descobriu centenas de estatuetas femininas quebradas em uma caverna perto do templo de Salomão em Jerusalém, para vários estudiosos essa descoberta sinalizou a existência do templo, para outros determinou o fim dos cultos pagãos pelo rei Josias, o qual ordenou a destruição de todos os vasos feitos para Baal e Asherah (Discovery, 1993).


Todas essas descobertas são fortes evidências da existência da Deusa Asherah. Parece claro que por determinado tempo essa Deusa teve mais espaço e representatividade na vida do povo em Canaã/ Israel, até ser taxada como a causa de todos os males que o povo estava sofrendo nas mãos de seus dominadores, em especial na época da dominação Babilônica, com toda experiência de destruição e exílio,
Aserá, na maioria do tempo venerada sob o corpo de uma árvore, era, inicialmente, a parceira de YHWH, mas com o crescente desenvolvimento do javismo como religião de um deus masculino, transcendente e único, ela foi taxada como sua maior rival e inimiga (Ottermann, 2005: 48).
A existência da Deusa Asherah remonta uma época de adoração a vários Deuses e Deusas, antes da ascensão do Javismo,
o culto da Deusa Árvore Asherah realizava-se, principalmente, em torno de uma árvore natural ou estilizada, ou seja, de um poste sagrado que podia estar ao lado de um altar seu ou de uma outra divindade, inclusive YHWH. Porém, seu culto foi realizado, de preferência, debaixo de uma árvore natural, nos chamados 'lugares altos', santuários ao ar vivo no topo das colinas e montanhas. Na maioria do tempo, uma imagem ou símbolo de Asherah estava também presente dentro do próprio templo de Jerusalém (Ottermann, 2005:.49).
É fato que a nova religião, centrada em Yahweh, vai se construindo e se impondo a partir da proibição a qualquer tipo de representação religiosa que não fosse Yahweh.
De politeísta Israel passa a se constituir monoteísta, pelo menos na religião oficial. Provavelmente, adorações a Deuses e Deusas dentro das casas continuaram por longo tempo, como forma de resistência. A centralização no Deus único, Yahweh, que neste processo também se apropriou das funções de Asherah, custou caro aos outros Deuses e Deusas que compartilhavam da mesma cultura. Esta proibição atingiu a vida de homens e mulheres, que ali encontravam uma significação religiosa.

Seria ingênuo querer defender, neste contexto, uma sociedade no antigo Israel onde havia reciprocidade entre os sexos, pelo simples fato de existirem as Deusas. Pelo contrário, como reflete Simone de Beauvoir (2002:.91), o culto a Deusa se dá dentro de um contexto patriarcal, onde a perda de representação da Deusa atinge profundamente e principalmente ao universo religioso das mulheres, sendo que, o culto a Asherah vai sobrevivendo, até ser definitivamente extinguido e proibido, dos espaços, das mentes e dos corpos, de homens e mulheres que tinham em Asherah uma fonte de significação para a vida.
É nesse contexto patriarcal, que Yahweh se torna uma forte representação do masculino no sagrado, justificando a dominação masculina, tanto no âmbito social, econômico, político, como religioso. A religião oficial israelita absorve então uma identidade somente masculina, onde o feminino passa a ser relegado ao espaço particular das mulheres.
Por isso, é extremamente importante uma memória da Deusa, em especial Asherah, consorte de Yahweh, não só numa tentativa de reconstruir a história do antigo Israel, mas principalmente dar espaço e voz às divindades femininas, que são uma possibilidade de identificação sagrada das mulheres, em busca de relações mais recíprocas e humanizadas entre os gêneros.


Fonte: Dossiê Religião
N.4 – abril 2007/julho 2007 ( Ana Luisa Alves Cordeiro)

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